Eu tinha uma noia quando era menino. Acho que começou com O Show de Truman, me fazendo crer que eu poderia ser o protagonista de uma série televisiva sem saber disso, com câmeras que estariam escondidas por toda parte, vigiando cada movimento meu e potencializando cada uma de minhas vergonhas de criança. Então evoluiu para Matrix: nosso mundo não é real, é claro que não, mas a simulação é tão bem construída que eu nunca vou conseguir acreditar nisso de fato. A fantasia era corroborada por O Décimo-Terceiro Andar, Cidade das Sombras e alguns filmes e livros que me acompanham até agora sem que eu lembre seus nomes.
Mas um dia surgiu essa pequena ideia, essa coisa incômoda, de que eu vivo em um mundo só meu e tudo é armado para que eu não saiba disso. Da mesma forma, minha mãe, meu pai e meus amigos viveriam em mundos individuais, cada um com padrões e convenções diferentes, mas a todos se permitiria conviver por meio do desconhecimento dessa individualidade.
A verdadeira noia, no entanto, era algo específico, estranho e tinha até forma física em minha imaginação: era uma sala ou quarto, uma falha no mundo, que anularia o consenso, fazendo com que todos lá presentes assumissem suas formas reais e tivessem que encarar o fato de que cada um tinha seu próprio mundo e ninguém ali iria se adaptar ao de ninguém.
Eu, do alto de minhas duas orelhas, dois olhos e um nariz, contemplaria meu pai como um corpo sem membros e com sete olhos, minha mãe transfigurada como um ser composto de milhares de pernas, e minha irmã pequena se arrastaria pelo chão, uma pasta disforme, gritando algo que minha língua – o português, uma língua só minha – traduziria como “ululululu, ululululu”.
Corta para ontem. Alguns anos se passaram, e o que era um medo de criança é agora um conceito mais amadurecido e despojado de pais com sete olhos. Consigo transmitir a ideia para os amigos mais próximos quando é o momento de divagar, mas nunca soube que ela tinha um nome. Esse nome é “Umwelt”, como me disse a tirinha de primeiro de abril do genial XKCD nas primeiras horas da manhã.
Depois de uma piada sobre uma tartaruga de barriga para cima, Randall Munroe, o autor da tirinha, me agraciou com o seguinte texto alternativo (no XKCD, o texto alternativo, que aparece em amarelo quando deixamos o mouse sobre a imagem por dois segundos, faz tão parte da piada quanto a própria tirinha):
“Umwelt é a ideia de que, já que seus sentidos reconhecem coisas diferentes, animais diferentes de um mesmo ecossistema na realidade vivem em mundos bastante diferentes. Tudo a respeito de você molda o mundo em que você vive – desde a sua ideologia até a receita dos seus óculos e o tamanho da janela do seu navegador.”
Não entendi a relação da piada com o texto alternativo. Uma tartaruga de barriga para cima, algo sobre percepção de mundo dos animais… Não seria a primeira vez que eu não entendo por completo uma das cabeçudas tiras do XKCD. Mas o umwelt, ah, o umwelt foi uma descoberta e tanto! Não era uma paranóia só minha, afinal.
Houve uma tarde em que, deitado na grama (verde) e olhando para o céu (azul), esperando com alguns colegas o horário da aula de Sociologia, discutíamos essa ideia. Percepções diferentes para pessoas diferentes. Mundos distintos para sistemas distintos. O melhor exemplo possível não era meu quarto povoado de monstros estranhos dignos de ficção científica de filme B, mas um dos colegas deitado na grama – um colega daltônico. Para ele, a grama e o céu eram variações bem parecidas da mesma cor, uma espécie de cinza.
Após ser educado para isso, no entanto, ele passou a perceber o Cinza 1 como sendo Verde e o Cinza 2 como sendo Azul. Ele “entendeu”, e para ele, assim como para mim, a grama é verde e o céu é azul. Perfeito. Mas nós sabemos que não estamos vendo o mesmo verde. O verde que eu vejo (sabe, aquele, o verde de verdade!) não é da grama, ele é meu. Sistemas diferentes, separados por uma diferença mínima no funcionamento de nossos olhos, e temos dois mundos diferentes.
Me diverte imaginar tudo o que não sabemos por não termos evoluído de forma a saber. Um órgão a mais e eu perceberia campos magnéticos como um “uõuõuõuõ” de intensidade variável. Um olho devidamente adaptado e eu identificaria, em tempo real e a cores, quem peidou em um elevador lotado. Uma antena em minha cabeça, e espíritos se tornariam um conceito tão fisicamente presente quanto uma brisa gelada.
O resto do primeiro de abril transcorreu normalmente. Na verdade, com muito menos piadas de primeiro de abril do que em todos os outros anos. Veja bem, podem ter sido as páginas que visitei, as pessoas com quem conversei ou o fato de ser um domingo, mas tenho certeza de que esse ano trouxe poucas piadas desse gênero.
Ao fim do dia, vi no mural do Facebook um comentário do amigo Fabio Bracht: “Só sei que a tirinha de primeiro de abril do XKCD é a coisa mais absurdamente foda que aconteceu hoje na internet.” Ansioso para entender por completo a tirinha que me ensinou algo tão legal de manhã, perguntei por que ele tinha achado aquilo.
“Abre ela em diferentes máquinas e navegadores”, ele disse, não querendo entregar o jogo logo de cara.
E aí, antes mesmo de conseguir achar o Firefox no Menu Iniciar, veio a compreensão. A compreensão de que eu tinha participado de algo “absurdamente foda” e passei um dia inteiro sem perceber. Abri o mesmo endereço no Firefox, e lá estava a tirinha Umwelt: uma piada sobre uma garota carregando uma cobra através dos quadrinhos, entre portais, por cima de um esquilo, e reclamando que não soube quando parar. Reduzi a janela, e a mesma piada era feita com alguns quadrinhos a menos e situações um pouco diferentes. O mesmo acontecia no Chrome, verificando mais tarde. No iPhone de um amigo, tudo que ele via era um círculo branco e meio etéreo em um fundo preto. (“Que medo, cara”, ele admitiu.) Em todos os casos, o texto alternativo permanecia o mesmo: “(…) Tudo a respeito de você molda o mundo em que você vive.”
O fato é que Munroe desenhou muitas, muitas tirinhas de primeiro de abril (todas as que ilustram esse texto, e muitas outras), e as separou por região, sistema operacional, navegador utilizado, tamanho da janela… Para um leitor do Texas, o dia começava com uma tirinha do XKCD sobre terremotos e nevascas. Para um do Canadá, uma piada sobre a aurora boreal. No Reino Unido, uma tiradinha sobre ele só ter desenhado coisas únicas para os “estados americanos que importam”. Para mim, uma tartaruga de barriga para cima e pronto, essa é a tirinha.
Todos com a sensação de que não entenderam tudo.
A maioria sem saber, por um dia inteiro, que só viram uma fração da coisa, proporcionada por seus entornos (Brasil, Rio Grande do Sul, computador com Windows rodando Google Chrome maximizado). A piada de primeiro de abril de Munroe foi uma brincadeira com a maior de todas as piadas de primeiro de abril: nossa percepção individual do mundo. Uma piada absurdamente foda, que passamos a vida sem perceber. Sem nem ter como perceber.
Para o meu colega, a grama é cinza – mas é verde (– mas é cinza!). Para mim, este domingo foi particularmente calmo no que diz respeito a piadas. Para um leitor no Canadá, esse ano foi tão permeado de pegadinhas que ele não aguentou e precisou desligar o computador. Para um leitor no Texas, o dia começou com uma tirinha sem graça e terminou sem maiores reviravoltas. Para mim, Randall Munroe fez a piada definitiva de primeiro de abril.
ᔥ xkcd.com (atualizada três vezes por semana)
↬ reddit.com (tópico explicando e mostrando todas as variações da tirinha)
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